Crescer: pt1

Questiono-me hoje sobre as implicâncias de isso a que chamam "crescer".
Há uns momentos, quando vinha ter com a minha mãe aqui a um restaurante, dei por mim a fazer o caminho que fazia quando era pequeno, entre a escola primária e o ATL.
Hoje em dia, a minha vida não passa muitas vezes por ali.
Foi grande o espanto ao deparar-me com uma cidade igual, parada, parece que parada para mim.
Lá estava a velha igreja, sempre nova, e as salas onde tínhamos catequese, exatamente iguais, intactas, com as mesmas fachadas e os mesmos ambientes, as lojas, nos mesmos sítios, que, apesar de terem mudado de gerência, me pareciam iguais. Aquela casa ali, e a outra, os carreiros de plátanos, tão imponentes, e o singular banco de jardim, tão característico.
Aquele envolvente carregado transbordava mistério, histórias, fantasmas.
Ali estavam todas aquelas avenidas, ruas e ruelas que fizera tantas vezes, para cima e para baixo, solitário e observando, perdido e à descoberta.
Se alguma coisa mudasse saberia logo.
Na ruela que fazia ligação entre a escola e a igreja, que depois dava para o centro paroquial, local do atl, vi-me transportado para a época em que era criança, que já me parece tão remota.
Todas as peculiaridades daquele habitual caminho me vieram à cabeça. Os saltos, as saídas do passeio, a contagem dos paralelos, a árvore "mágica" que era uma espécie de portal e que nós íamos saltar, todos os raspanetes que ouvia por não seguir o "carreirinho", todas as histórias mirabolantes inventadas por nós para contar a um amigo:
- Um amigo do meu primo, por estar sempre a ouvir musica no MP3, e muito alto, ficou surdo e só ficou a conseguir ouvir o MP3;
E mais umas histórias maradas de uns irmãos mais velhos mauzões de quem tinha medo.
- Sabias quem é que eu vi hoje a conduzir? A Matilde. Havias de tirar a carta. - Diz a minha mãe, depois de pousar os talheres como quem tem algo para dizer.
-Ya, ela já conduz.
Facto interessante: De facto, as bicicletas deram lugar aos carros...
Antes, era normal irmos a um rio ou uma lagoa qualquer de bicicleta, e era mágico. Sentíamos o vento na cara naquelas tardes amenas de verão, e que alegria que sentíamos. Era uma mistura entre a descompressão de quem faz exercício e uma sensação de estarmos vivos, a que o envolvente, com todas aquelas ruas estreitas e campos cultivados, muito ajudava.
Agora, isso está ultrapassado, "vamos de carro!".
Chega-se mais rápido, mas é logo ir e logo partir para outra. A conceção de viagem mudou. A beleza estava, para mim, também naquela ida, não só na realização do objectivo, mas no caminho que fazemos até ele.
- Quem está naquela mesa ali é o Rafa. Nunca mais falaste com ele, ora não?
- Não.
Para além dos meios de transporte, também as relações mudaram.
Os sorrisos genuínos, brincalhões e despreocupados deram lugar a uma máscara, uma máscara defensiva e agressiva contruída pelo medo e pela repressão.
" Não te metas comigo, sou lixado eu"
É isto que me parece querer dizer aquela postura cambaleante e aquele rosto fechado e rezingão que algumas pessoas aqui da zona, e um pouco por todo o mundo, escolheram adotar. O engraçado é que os olhos não me dizem isso, só medo, receio.
Parece-me que quem usa este estilo "mauzão", já tão agarrado ao corpo, tanto não tem noção que o usa, como está longe de pensar que há quem os perceba profundamente.
Se me calha cruzar do mesmo lado da rua com alguém assim, ninguém abandona o estilo defensivo, e, aqueles que já foram dois amigos ou duas crianças que se conheciam, cumprimentam-se com um desconfiado:
"-Então, tudo?"
E seguem o seu caminho, cada um para o seu lado.
Em toda a parte vejo destes velhos amigos, cada dia mais velhos, e com novos estilos.
Um é "hipster", outro um desses "badboys", outro é intelectual, e o outro nem sei, uma mistura de vários. E por ai em diante, milhares de vertentes relacionadas com esses primeiros padrões, essas simbologias que, no fundo, não são mais que uma quantidade de características que depois nós adotamos como nossas.
Todos, aos poucos, vão escolhendo uma dessas imagens. Sentem-se seguros com elas.
Eu também serei assim?
Escolhem consoante aquelas que lhes parecem melhores, consoante o que querem parecer e o papel que querem desempenhar na sociedade.
Recordo-me que quando era pequeno, pouco me importava com o que vestia ou o que parecia, e, quando era obrigado a escolher algo, escolhia uma T-shirt do Spiderman, não uma complexidade tremenda de padrões que tem de "ligar" com a imagem previamente estabelecida que eu quero transmitir. Mas talvez fosse esse o princípio do fim.
Questiono-me se não se lembram de quem eram, se não se lembram da criança que eu me recordo, livre?
- Sabias que o Zezinho foi apanhado com 10 gramas de haxixe?- atira a minha mãe, esperando, atentadamente, a minha resposta.
-O Zé, filho da Jacinta da frutaria!? Não pode ser!
Como se não estivesse nada à espera.
É verdade, o Zezinho agora conduz um Seat vermelho a cair de podre, e fuma uns valentes canhões na doca, com um grupo de outros zezinhos. A tal imagem de "badboys".
O Zézinho era um rapaz muito simples, uma figura que todos gostávamos e conhecíamos. Era gordinho e de estatura média, e sempre muito sincero e afável. Tinha cabelos louros claros, e andava sempre com uma pastilha elástica na boca, daquelas que se vendem nos quiosques, com diversas temáticas, ora espaciais, ora de desporto, etc...
Lembro-me que de manhã, enquanto a mãe o vestia, ele ficava num pranto, e só pensava em escapar-se.
- Espera Zé, ainda não está!- dizia a mãe dele, dando os últimos retoques ao nó da gravatinha e depois afastando-se para ver toda aquela conjuntura. Ficava orgulhosa.
Mal ela sabia que ao mínimo intervalo da cerimónia para onde íamos, já o filho se escapara e fugira com o "gang", mandando tudo aquilo pelo ar e perdendo metade das "peças" do fato da primeira comunhão do avô.
Daqui para ali, dali para aqui, sempre na correria e sempre cheio de energia. Podia ficar na retaguarda do grupo, mas nunca se privava de lá ir, e de brincar. Quando se sentava à mesa era uma alegria, comia muito, e ria-se muito, num riso contagiante de tal despreocupação.
Mas até o Zezinho quebrara. Fora forçado desde adolescente a que mudasse, fora vítima de um sofrimento tremendo. Azedara, escolhera não mais ser humilhado, e, dessa maneira, enquadrar-se, colocar a máscara de badboy e dizer quantas vezes e quão alto fosse preciso ao espelho que assim era, até, finalmente, acreditar nisso. Agora, é o que ele acredita. É mais um na manada, arrastado para um circuito sem fim e sem ser capaz de ver a luz ao fundo do túnel.
- Tou, tia Carminho...
Olá! Sim, sou eu, não se enganou.
Sim, já são 20 ahah.
Muito obrigado!
Xauu, xauu, beijinhooo!
Como ele muitos outros, que, de ano para ano, vão deixando para trás quem eram e quem são, todas as suas singularidades e ricas características. Vão, revoltados por assim serem, (como se fosse isso que estivesse mal) fechando com grande dificuldade a sua criança num grande baú, daqueles dos sótãos, sufocando-a, mandando-a a toda a força para dentro, e sentando-se, na parte final, em cima dessa arca, fazendo força com o corpo.
Quando finalmente fechada, suspiram de alívio, ofegantes e vazios.
Ainda aí estás, pequeno Zé?
Fechado a 7 chaves, acorrentado e todo chupado por essas sanguessugas da vida? As grandes fábricas e multinacionais, os hábitos impostos e tão decadentes, os vícios que te chupam o "sangue".
Desperta, ergue-te!
- Ei, Afonso, Afonso, Mas tu não comes?
David Palhares Lima.