Vila do passarinho

É dia, está sol, tudo canta na vila do passarinho.
O famoso médico e psicoterapeuta Ricardo traz consigo brincando uma cadelinha branca, muito irrequieta, que num largo cheio de gente, como num relâmpago, decide se aproximar de um senhor que lá estava sentado chamada Jorge. Jorge é um senhor que trabalha no campo, está visivelmente sujo e calcinado do trabalho; bebe também ocasionalmente num bar da aldeia e frequentemente bate na mulher. A cadelinha a meio da brincadeira, já depois de ter aberto o semblante do homem, percebendo tudo isso assusta-se, mas como já estava no seu regaço morde-lhe, em desamparo e pânico. O homem surpreende-se, mas depois pega nela de forma bruta e diz-lhe " estás a ver estas nocas, voltas a morder-me e vais saber o sabor delas, minha grande filha da mãe". Ao lado dele, relativamente perto, está um senhor chamado Acácio, engenheiro, que ouvindo isto diz friamente a Jorge: " se tocas nessa cadela não sais daqui vivo; ouve lá o que eu te digo, seu canalha!" A cadela solta-se, afasta-se e depois corre um pouco brincando fazendo corridas com Ricardo; assim passam as horas.
De repente, perturbando a calma que se fazia sentir da natureza, rompe um fogo de artifício intenso que celebra o dia de nossa senhora da vila do passarinho, a cadela assusta-se, aninha-se, e num pânico vendo aproximar Jorge que se preparava para ir do largo da vila para casa, salta-lhe à cara e morde-lhe violentamente. Está montada a algazarra. Mulheres como Luísa e Gertrudes ficam rapidamente assustadas e escandalizadas, uma delas é mulher de Jorge, muito alcoviteira, submissa e ressabiada, e dizem que isto é um ultraje, que é inaceitável, e fazem menção de reportar à guarda. As pessoas acorrem a ver, e Jorge está visivelmente irritado, mas também assustado, e a sangrar. Acontece que a guarda passava justamente por ali, na figura do oficial João. João, conhecido por ser calmo e justo, figura rara nessa aldeia, respira fundo, tomando em conta a gravidade do acontecimento e vendo aquilo que podia dar aquele estranho caso; leva a mão à cara e novamente respira fundo. Jorge está efetivamente com a cara fortemente mordida e por isso provavelmente a cadela terá de ser abatida. A cadelinha põe-se a chorar junto a Ricardo, olhando muito para ele com as patinhas em frente da cara, mas já é tarde. Ricardo com sentido de dever entrega a cadelinha à guarda e afasta-se um pouco, triste e perturbado. Jorge, Gertrudes e Luísa ficam cruelmente satisfeitos, numa espécie de sentimento de justiça inadequado e característico. Jorge ainda está visivelmente magoado, mas sobrevive.
Passadas umas horas a cadelinha é abatida.
Já anoitece, tudo está novamente calmo na vila do passarinho, e Ricardo, não sendo daí, decide-se a ir embora. Reflete para consigo que sempre há estrago quando vem à vila do passarinho. Acácio junta-se um pouco a ele no caminho de retorno e diz " Estes filhos da puta, não acha, Ricardo?". Ricardo prefere ir só, não precisa naquela hora dos juízos de Acácio.
E assim o dia caminha para o fim. A natureza está bem naquele início de noite na vila do passarinho, tudo está calmo e sereno, tudo brinca, à exceção, claro, das pessoas, e de tudo o que lhes é inerente. Ricardo reflete novamente sobre a vila do passarinho, sempre parada, sempre igual, e chora a morte dessa cadelinha tão jovem e tão pura. O dia termina com este regresso a casa, em que Ricardo vendo a placa no sentido contrário que diz " Vila do passarinho: 20 km" diz: 20 km é bom, quer-se de lá é distância!